"Bergman, hoje admirado, respeitado, hoje praticamente mito e tabu no mundo inteiro, quando conseguiu enviar esta fita a Cannes-56 e foi medrosa e desconversadamente agraciado com um vago prêmio do humor poético (talvez nem prêmio, apenas avara menção) já havia escrito cinco filmes – entre os quais os aqui conhecidos “Tortura de um Desejo” (Hets), 44, e “A Mulher e a Tentação” (Eva) 48, já havia dirigido 15 outros, dos quais também aqui já conhecíamos “Sede de Paixões”, “Juventude”, “Mônica e o Desejo”, “Noites de Circo”, “Quando as Mulheres Esperam”, “Uma Lição de Amor”.
As quatro primeiras obras-primas absolutas, sendo que o impacto “Noites de Circo” no I Festival de Cinema de São Paulo – março de 54 – já situava o cineasta entre os maiores de toda a história do cinema, como tivemos ocasião de afirmar por ocasião de sua menosprezada programação numa mera “matinée” da mostra paulista. A verdade é que o episódio sofisticado (o do elevador) em “Quando as Mulheres...” e mais o toque de comédia de “Lição” agradavam muito mais a nossa como sempre acadêmica e estratificada crítica. E ninguém queria nada com o mundo das tremendas humilhações, do peso do Destino e infernal dilaceramento psíquico que constituíam a tônica do artista. E foi preciso que ele levasse o humor de “Quando” e “Lição” ao extremo, que enveredasse pelo “marivaudage” e se aproximasse do literário e do picante de uma farândula francesa como “As Regras do Jogo”, de Renoir, para tanto na França como aqui, ou até mesmo em Buenos Aires e Montevidéu, reconhecessem o óbvio: uma singularidade cinemática como poucas vezes a Sétima Arte havia revelado. Com “Sorrisos”, Bergman deixou de ser o “superado expressionista de 25 anos atrás”, deixou de ser o que “gostava de se e de mazocar, deixou de ser imatura mania dos que gostavam de ratos brancos, etc.”. Ele porém, ainda que desviando pouco (ou muito) de uma linha de implacável observação humana e indagação filosófica, de escravo da transcendência (que só voltaria a culminar talvez em “Morangos Silvestres”, certamente em “Gritos e Sussurros”) obteve finalmente o “passe livre”, o beneplácito da maioria compacta que sempre tem estrangulado não só o cinema como todas as artes e, o que é pior, a plena realização humana. Aqui temos uma ciranda amorosa, ação que se consubstancia através dos desencontros da inocência da malícia. Uma “Tensão em Shanghai”, não maravilhosamente melodramática como no clássico de Josef von Sternberg, mas através da candura versus picardia, do erotismo perdendo para o real amor, do jogo franco ante a astúcia e dissimulação. Um advogado viúvo (Gunnar) que se vai casar com uma menina (Ulla) que tem a idade de seu filho (Bjelvestam), este que se apaixona pela futura madrasta; a atriz (Eva Dahlbeck) que resolve reconquistar o advogado, do qual teve sem lhe contar um filho; o amante da atriz, um conde conquistador (Kulle), uma criadinha complacente (Harriet), um jardineiro (Fride) sempre disposto a viver a vida, a mãe da atriz (Naima Wistrand) “coccotte” retirada desde um de seus ex-amantes deu-lhe um castelo a fim de que ela não escrevesse suas memórias. A fita aqui foi originalmente lançada pela Condor Filmes e com o título “Sorrisos de uma Noite de Amor” a 4 de fevereiro de 1959 no Cine Normandie e depois reexibida entre outras vezes no “Cinema de Arte Bijou”, em setembro de 1966.".
Publicado originalmente no "O Estado de S. Paulo" de 10/06/79.