segunda-feira, 1 de junho de 2009

O SEMINARISTA


“Uma surpresa. De certo modo o único filme “não torto”, o filme de emoções e proposições mais diretas e mais normais apresentado no último festival de Gramado. Uma revelação vinda de Geraldo Santos Pereira, que anteriormente com seu irmão Renato havia realizado “Rebelião em Vila Rica”, “Grande Sertão – Veredas” e “A Balada dos Infiéis”. A história deriva de uma obra romântica de Bernardo Guimarães (um Bernardo Guimarães longe, felizmente, dos desvios e exageros de “A Escrava Isaura”) e deu em resultado um filme que exceto algumas pouco graves assimetrias formais, uma abrupta, questionável e mal equacionada, ainda que intensa e bonita sequencia de amor físico no pré-final, tem belíssimos momentos de inspiração: a chuva que, separando materialmente, aproxima em sentimento os dois amantes, a caminhada de Louise Cardoso até a cerca carregando o cesto de roupas, a maravilhosa imagem da cabana sob a tempestade noturna com a palmeira fustigada pelo vento. Este nosso “O Seminarista” de certo modo lembra “Torgus” o estranho e impressivo filme alemão que Hans Kobe dirigiu em 1922. E o drama religioso, vindo do romantismo de Guimarães, na época atual adquire um tom de registro das restrições de um tempo, muito válido para tempos posteriores e para outros cerceamentos e imposições. No elenco, revelações com Eduardo Machado (que lembra o Paulo José do início em “O Padre e a Moça”) e com Louise Cardoso (que lembra também algo da Eliane Lage de “Caiçara”), uma caracterização fidelíssima ao espírito do tempo com Nildo Parente e um ou dois lampejos da maior essencialidade com o excepcional Xandó Batista de “O Predileto”. Um filme brasileiro reconfortante e obrigatório.”


Publicado originalmente no “O Estado de S. Paulo” de 15/05/77.

MULHER PECADO (?)


“Filme da dupla Isabel Sarli-Armando Bó, que aqui esteve proibido pela censura por vários anos, como comprova a presença no elenco do elemento do nossos rádios, TV e teatro, Ciro Bassini, que faleceu em 16 de outubro de 1971. Isabel foi “Miss Argentina”, em 1955 ou 56 competindo com a brasileira Emilia Correia Lima e logo descoberta por Bó para o cinema. Isso com “El Trueno Entre las Hojas” (58), que no entanto aqui passou depois de “Sabalerod” (59). Prosseguiu com “Índia” (60), “Y el Demonio Creó a los Hombres” (60), “Favela” (de 61 e ao que parece o único em real co-produção com ou produção no Brasil), “Lujuria Tropical”, “La Leona”, “La Diosa Impura” (64), “La Mujer Del Zapatero”, “Los Dias Callentes” (65), “La Tentaciona Desnuda” (66), “La Señora Del Intendente”, “La Mujer de Mi Padre” (67/68). Depois vieram “Tentação Nua”, que nada tem a ver com a fita anterior de igual título original e que aqui passou devidamente remontada, enxertada e adaptada como fita brasileira em meados de 70 mas que, com o seu verdadeiro título e produtora (SIFA) argentinos, de “Extasis Tropical”, passou ao mesmo tempo em Nova York. E vieram ademais “Fogo” (“Fuego”), aqui em janeiro de 73; “Mariposa da Noite” (“Una Mariposa en la Noche”), aqui em 13 de dezembro de 1976; “Desejo da Carne” que não podemos saber qual é e nos chegou a 26 de dezembro de 1977. Finalmente, a 11 de dezembro do ano passado “Luxuria Tropical” que veio como sendo o lançamento retardado não de “Lujuria Tropical” mas sim de “La Mujer de Mi Padre”. Alguém pode entender o “imbroglio”? O fato é que a censura e as ligas femininas da Argentina vetaram os filmes do casal e embora eles façam sucesso comercial até na Inglaterra, a solução oficiosa ou passaporte são “rodagens” disfarçadas extras e/ou providenciais no Brasil ou Paraguai.”


Publicado originalmente no “O Estado de S. Paulo” de 29/04/79.

ALCATRAZ, FUGA IMPOSSÍVEL (“Escape from Alcatraz”)


“O diretor Don Siegel é um caso raríssimo. Ao que lembramos assim de momento, o único na história do cinema que quarto de século após sua revelação – “Justiça Tardia” (“The Verdict”), Warner, 46 – após interregnos e filmes de algum ou nenhum interesse, reaparece e se firma com uma obra-prima absoluta, uma “reussite” até deslocada no contexto e na mediocridade estabelecida do ano (ou da década?) de sua realização: “O Estranho que nós Amamos” (“The Beguiled”) – Hollywood, 1971. É verdade que em 56 ele já havia obtido outro, mais pelo tema de “science fiction” – aqui no Brasil, praticamente impossível de ser aferido, pois à época de seu lançamento veio numa das mais típicas e sintomáticas cópias “hechitas en casa” – “Vampiros de Almas”. E, oito anos depois, fazia a refilmagem para a TV de um clássico de Siodmak, “Os Assassinos” (“The Killers”), tão apreciada que acabou adquirida para lançamento mundial nos cinemas de verdade. Agora de novo está Siegel de volta. É verdade que arcando com o peso da sociedade (compulsória desde o êxito da ajuda ou associação com o ator-produtor Clint Eastwood em “O Estranho”...). Mas talento é talento e sempre se poderá esperar algo do cineasta que aqui trata de misteriosa ou hipotética escapada dos únicos três convictos que talvez tenham conseguido fugir da ilha-presídio de Alcatraz, em seus 29 anos de sombrio funcionamento. Hoje, ‘Alcatraz”, fechada em 1963, está aberta à visitação turística desde 1973.”


Publicado originalmente no “O Estado de S. Paulo” de 18/11/79.

A DAMA DO SEXO. É HORA DE SABER QUE SUA MULHER QUER SAIR DA ROTINA (?)


“Eis no que dá a ação quinta-coluna de certo tipo de crítica e teóricos paulistas quando, ao contrário dos cariocas, faz o que faz com São Paulo propiciando piadas como o último aborto na APCA. Com que motivação e com que respeito os financiadores, distribuidores ou exibidores paulistanos vão-se arriscar a programações mais límpidas se o escárneo e o apedrejamento é a regra para qualquer tentativa empenhada? Assim o monopólio do “sério” fica para o regional, o sestroso, o afro-sincrético que se perpetra além fronteiras de Queluz, onde está instalada a glória, o dinheiro fácil, a consagração pré-combinada, a sensação de poderio pela qual todos ficam alucinados. Com os filmes do Rio, jamais cariocas, baianos, mineiros, gaúchos e os Quislings paulistas se atrevem a falsas exigências como as que aqui nos fazem e que aliás lá na Guanabara seriam rebatidas da maneira mais “cangaceira” possível. Explicação mais viável: rivalidades pessoais, imediatismo, nenhuma afinidade, repulsa mesmo pelas fontes luso-cristão-européias que o cinema de São Paulo tem em essência. Manda pois a coerência – adorem uma fita como esta!”


Publicado originalmente no “O Estado de S. Paulo” de 13/01/80.

GORDOS E MAGROS


“A última (foi exibida na quinta-feira) das co-produções da Embrafilme que sua distribuidora viu-se compelida a colocar por somente um dia no festival nacional do Cinesesc. Estréia do fotógrafo Mario Carneiro na direção. Na concepção e na pronta e prazerosa aceitação de tudo, os sempiternos demônios interiores da xenofobia e do maniqueísmo ideológico. Um mundo de gordos (ricos, burgueses, culpados) devora o gueto dos magros: os pobres, os desamparados, os ignorados, os humilhados e ofendidos, que nunca são aqueles que há 30 ou 15 anos vêm se beneficiando da imaturidade política e profilática que impera neste país. A crítica carioca afim, e a colonizada por ela, só poderia adorar e ver inteligência e carapuças geniais em tudo. Talvez veja mesmo – é a afinidade eletiva, o nivelamento cultural e de interesses, as amizades e inimizades, patota enfim. Ah! Como certos grupos nunca perdem seus vezos, certas tendências nunca são modificadas. Getúlio Vargas sempre disse lutar contra os males do perrepismo, que passaram por uma metempsicose para ele mesmo. O Brasil tanto falou contra o matreirismo pessedista que está ai, ainda vivo e redivivo como se nunca houvesse sido desmascarado.”


Publicado originalmente no “O Estado de S. Paulo” de 06/04/80.

O PREÇO DE UMA VIDA (“Musukoyo”)


“Um menino (Ken Tanaka), filho único, é assassinado por um débil mental (Shinobu Otake). O pai, enlouquecido ante a impotência da justiça, procura, como na sentença bíblica, tomá-la em suas próprias mãos, inclusive para que o fato não se repita e outros pais venham a sofrer o mesmo. A fita ficou em quinto lugar entre as dez melhores de 1979, escolhidas pelo Kinema Junpô, a revista quase oficial do cinema japonês. O primeiro lugar coube a uma direção de Shohei Imamura, que assim voltou ao realce no cinema de sua terra. E, tanto numa como noutra, o ator considerado melhor foi Tomisaburo Wakayama, intérprete realmente excepcional, o mesmo das séries dos bonzo malandro e do renegado vingador e o qual, há mais de 10 anos, vimos apontando como uma espécie de Charles Laughton da melhor fase (anos 32 a 34), época do Nero de “O Sinal da Cruz”, do uxoricida de “Castigo do Céu”, do louco doutor Moreau de “A Ilha das Almas Selvagens”, o protagonista de “Os Amores de Henrique VIII” e o pai incestuoso de “A Família Barret”, quando ele ainda não tinha a total consciência, suficiência ou maneirismos de sua elogiada técnica teatral. Contudo, nesta fita japonesa duas más reaparições: a do diretor Kinoshita, sempre pretencioso mas pouco eficiente, e da “estrela” Hideko Takamine, invariavelmente desenxabida e estomagada. Nos demais papéis, os experientes Takahiro Tamura, que era galã no Shochiku e Sayuri Yoshinaga, uma das estrelinhas jovens da penúltima fase da Nikkatsu.”


Publicado originalmente no “O Estado de S. Paulo” de 02/08/81.

É TRISTE SER HOMEM, 24ª época (“Otoko Wa Tsurayo-Haru no Yume”)


“Esta série do casadouro e sempre rejeitado caixeiro-viajante interpretado por Kiyoshi Atsumi e realizada por Yoji Yamada chega à vigésima quarta fita. Parece que já chegaram à trigésima e que a próxima deverá ser parcialmente “rodada” no Brasil. Esperemos que Yamada escolha para a namoradinha auri-verde do herói uma real, jovem e bonita atriz, e não alguma exagerada cantora de forró-turístico, senão o vexame será o habitual, sempre que chega algum desavisado (ou não tão ingênuo) cineasta de fora. Neste filme número 24, a ação se passa nos Estados Unidos e de lá foi mobilizado apenas um ator, o desconhecido Herb Edelson. A atriz que faz a irmã do protagonista é também Chieko Baisho, como sempre uma personalidade apagada, embora intérprete eficiente. E pela enésima vez está no elenco, num daqueles papéis de calmo e tranqüilo ancião que o consagraram, o veteraníssimo (e ainda vivo?) Chishu Ryu, o excepcional característico que era quase a projeção inconsciente, a imagem alter ego do falecido Yasujiro Ozu, talvez o mais representativo e clássico diretor de todo o cinema japonês.”


Publicado originalmente no “O Estado de S. Paulo” de 27/12/81.

MAÇA (“The Apple”)


“Musical (dos EUA ou, talvez, de Israel), provavelmente desservido pela múltipla atuação do medíocre Menahem Golan. No entanto, o cenógrafo Jürgen Kiebach e a figurinista Ingrid Zoré são os mesmos e excepcionais de “Tiro de Misericórdia”. A ação gira em torno do poder do “rock” no ano de 1994. Não será um tanto prematuro, ou um tanto “ficção científica”, pensar que daqui a 13 anos o “rock” continuará mandando nesta verdadeira areia movediça em que se estão transformando a vida e a sociedade em nosso planeta? Bastará que alguém invente algum satânico dispositivo, tipo antigo rádio combinado com TV, mas sem necessitar estação transmissora e dependendo apenas de um dial maluco que capte imagens e sons que se estarão passando em qualquer local e hora sem precisar mais nada que algum cruzamento de tabelinhas e o mundo inteiro, “privacidade” (vá também lá a palavra pernóstica) alguma, segredo algum, esconderijos quaisquer, ficarão a salvo da devassa ou da bisbilhotice dos possíveis futuros seis, oito ou dez bilhões de seres à deriva que estarão saturando o planeta. Segundo a sinopse, “a época é 1994 e o mundo estará completamente louco. Essa loucura exterioriza-se principalmente através da música. Sua explosão maior acontece num festival de música transmitido mundialmente através de 99 canais dolby, que desencadeia uma verdadeira orgia de emoções e histeria. Pandi (Grace Kennedy) e Dandi (Allan Love) são os astros de rock do momento e apresentam seu último sucesso The Bim que está preparado para levar todos ao delírio. Nos bastidores estão Bogdalov (o horrível Vladek Sheybal), o diabólico promotor do festival e seu assistente Shake (Ray Shell), ocupadíssimo em manter o frenesi da música alucinante. De repente, algo sai errado. Dois novatos, Alphie (George Gilmour) e Bibi (Catherine Mary Stewart), entram no palco para defender a composição deles, concorrente no festival...”. O pior, ou o irônico é que com toda essa pretensão futurológica, desde o advento do sonoro em 1929, de certo modo, tal tipo de história e de “problemática” já foi feita e invectivada como “escapista e superficial”, pelo menos um milhar de vezes.”


Publicado originalmente no “O Estado de S. Paulo” de 10/01/82.

CORPOS ARDENTES (“Body Heat”)


“Uma das poucas e gratas surpresas que o cinema de Hollywood tem podido nos dar nos últimos tempos. Esta primeira direção de Lawrence Kasdan. Como que o roteirista desse convencionalíssimo e ultra-comercial “Os Caçadores da Arca Perdida” e também dos incolores “Cuidado com meu Guarda Costas” e “Brincou com Fogo...Saiu Fisgado” pôde fazer um filme que, talvez mais que o “Chinatown”, de Polanski, reporta-nos ao melhor clima daquilo que os críticos franceses talvez com certa impropriedade chamam de o “cinema noir” americano? A crítica e folhetos dos EUA falam de semelhanças com “Pacto de Sangue”, “The Maltese Falcon”, “Sunset Boulevard”. Quanto aos dois primeiros, principalmente “Pacto”, a asserção é perfeita. A fita tem clima, tem um erotismo velado, agora não tão velado, aliás, mas poderoso; tem um tom de queda em pecado, de desafio ao abismo que lembra mesmo o melhor “elã” daqueles tempos em que Fred MacMurray, Humphrey Bogart, Dick Powell, Wendell Corey e outros viam-se emaranhados na selva de asfalto e alumínio, cristal e concreto que eram compelidos a enfrentar na vida americana da depressão e do sonho, da guerra e de seu perplexo tempo imediatamente após. Mas, mais que por Kasdan, “Body Heat” existe por via de um ator e personalidade singular: o William Hurt que já havíamos visto em “Testemunha Fatal” e “Viagens Alucinantes” e que, parecendo um álgido e longilíneo Gene Hackman, constitui a maior revelação do cinema norte-americano no último decênio. Um tipo de letão ou lituano, com uma vibração contida e um fogo de convicção, como Hollywood não parecia mais que poderia dar guarida.”


Publicado originalmente no “O Estado de S. Paulo” de 06/06/82.

A MARCA DA PANTERA (“Cat People”)


“O pobre Val Lewton jamais poderia imaginar que, 40 anos depois, seria refilmado seu maravilhoso “Sangue de Pantera”, o filme de duração (73 minutos), orçamento, elenco, ficha técnica e apoio-B, com que ele iniciou sua hoje antológica série terrorífica de 11 obras-primas nos estúdios da RKO, de 1942 a 45 (o citado, mais “A Morta Viva”, “O Homem Leopardo”, “A Sétima Vítima”, “O Fantasma dos Mares”, “A Maldição do Sangue de Pantera”, “A Ilha dos Mortos”, “O Túmulo Vazio”, “Asilo Sinistro”, além de “Mademoiselle Fifi” e “Youth Runs Wild”). A série, praticamente descoberta pela crítica brasileira, que a princípio apressou-se atribuí-la ao diretor Jacques Tourneur, só porque isso lisonjeava seu anti-americanismo e sua francofilia, e o singular produtor, logo em meados de 43, a princípio “suspeitado” e imediatamente após (44) o denominador comum evidente com “A Maldição do...”, decididamente localizado por este crítico, seriam posteriormente (48/50), época de sua programação por nós feita no “Clube de Cinema de São Paulo”, que depois resultaria na “Cinemateca Brasileira” ridicularizados e atacados por outros críticos e facção dominante no “Clube”, então fanáticos só pela “europeice” e pelo “neo-realismo” (como será facílimo comprovar consultando os jornais da época), só há uns sete anos, com o livro que o estudioso americano Joe Siegel publicou na Inglaterra, é que viriam a ser mundialmente reconhecidos e definitivamente consagrados. “Sangue de Pantera” agora vem em Technicolor, 118 minutos, equipe extensa e dispendiosa (como atualmente é moda, dumping ou chantagem) e sob a direção do calvinista Paul Schrader (muito longe do humanismo e laicidade cultos de Lewton). Muito modificado, também, e trazendo Nastassia Kinski no papel que foi da então injustiçada Simone Simon e Malcolm McDowell transformando o médico ateu e conquistador de Tom Conway num irmão licantrópico e incestuoso. Vejamos, mesmo porque, como diz a nem sempre sábia sabedoria popular, não há como um dia depois de outro.”


Publicado originalmente no “O Estado de S. Paulo” de 05/12/82.