domingo, 2 de dezembro de 2007

LILIAN, A SUJA *

"A idéia até que não é má e ainda que encenada adventiciamente daria margem a uma produção comercial-corrente dotada de epidérmico mas razoável interesse. Claro, não vamos pensar numa mitológica Louise Brooks vagando expressionisticamente pelas ruas soturnas de Berlim ou da Hamburgo de fins dos anos 20, como sob a batuta de Pabst em “A Caixa de Pandora” ou “Diário de uma Pecadora”. Mas não seria má matéria-prima esta idéia de uma moça traumatizada e perdida pela miséria e pelo arrimo devido à mãe paraplégica, além de humilhada e assediada pelo patrão boçal durante o expediente do único emprego que conseguiu arranjar numa época de recessão. E que, à noite transforma-se em uma implacável caçadora de homens, os quais acaba matando ao fim de cada noitada de sexo enlouquecido. Ao que parece trata-se do fac símile antecipado de um filme holandês da atual safra erótica que um dos financiadores behind teria visto por lá ou tomado conhecimento, via comentários ou publicações especializadas. Nada contra. Só que melhor se tudo à la Pabst e a la Louise Brooks/Fritz Kortner/Francis Lederer. Aqui como diretor, co-autor e iluminador-câmera temos a inegável competência, na última função, de Antonio Meliande. Em vez de Louise, Lia Furlin. E no lugar dos Kortner ou Lederer necessários, não um Hingst, um Rovedeer ou um José Lucas, como a princípio nos informaram, e sim Felipe Levy, José Carlos Braga, e o até apropriado Roque Rodrigues, talvez tão apropriado quanto um dos próprios técnicos utilizados - Beppe Lampa, com seu tipo de “popolone” italiano do Norte. Como a paralítica e dependente, Leonor Lambertini. A verificar?"

Publicado originalmente no "O Estado de S. Paulo" de 03/01/82.

* Este filme será exibido no Canal Brasil, dias 12/12 à meia-noite e 15/12 às 04:30hs.

AMADA AMANTE *

"Em “Amante Muito Louca” tínhamos o intencional “desmascaramento” das limitações de uma família classe média do Rio em vilegiatura em Cabo Frio. Aqui temos o atritamento de uma outra, esta vinda do interior paulista para o mundo totalmente oposto (será?) da forçada mitificação carioca de Copacabana, Leblon ou Ipanema. O quarto filme de Cláudio Cunha (os anteriores foram “O Clube das Infieis”, “O Dia que o Santo Pecou” e “Vítimas do Prazer – Snuff”, esta, por sinal, particularmente valorizada pela excepcional criação interpretativa de um carioca, Hugo Bidet). E uma das mais ambiciosas e bem escoradas produções paulistas da nova fase porque passa o cinema brasileiro em geral. No elenco, o grande trunfo de prestígio e atração é a presença de Sandra Bréa, que aqui contracena com Luis Gustavo, Rogério Fróes, Neusa Amaral e em participação especial, Carlos Imperial. A fita foi inteiramente “rodada” no Rio e deverá se constituir num dos melhores êxitos de exibição da atual temporada."

Publicado originalmente no "O Estado de S. Paulo" de 23/07/78.

* Este filme será exibido no Canal Brasil, dias 20 à meia-noite e 24 às 4:00hs.

ARIELLA *

"E já que estamos falando em liberação, eis que por meio do senso seletivo ou faro para a bilheteria do produtor Rovai, um nome maldito, uma escritora invectivada como Cassandra Rios, chega ao cinema. E com a sorte de contar na direção com um elemento como o veterano ator John Herbert, o qual em seus dois e bem menos ambiciosos episódios de estréia em “Cada um Dá o que Tem” e “Já não se Faz Amor como Antigamente” revelou-se um realizador de cinema surpreendente, que para nós – tipo de filme à parte – fazia até pensar nos requintes e no domínio rítmico-plástico e de elenco de um E. A. Dupont. A história é de uma órfã que ao descobrir que fora enganada por seus falsos pais e irmãos (em verdade tios e primos) resolve partir para a vingança. Ao ser lançado no Rio o filme bateu recordes de bilheteria e é de se esperar que o mesmo ocorra aqui."

Publicado originalmente no "O Estado de S. Paulo" de 02/11/80.

* Este filme será exibido no Canal Brasil, dia 27/12, à meia-noite.



A FLAUTA MÁGICA ("Trollflöjten")


"Segundo a maioria, de certo modo a mesma maioria que Bergman teve deliberadamente ignorando-o ou contra si quando da absoluta revelação e florescência criadora de “Sede de Paixões”, “Juventude”, “Mônica”, “Noites de Circo”, e, em certos casos, até “O Silêncio” e “Gritos e Sussurros”, a primeira real transposição ou aproveitamento de uma ópera em cinema. Bergman é um deus Jano: tanto tem sua face de Dr. Jekyll (os filmes citados, mais “Fangelse”, “Morangos Silvestres”, “Persona”) como também pode se tornar um terrível Mr. Hyde (“A Fonte da Donzela”, “Sorrisos de uma Noite de Amor”, “Vergonha”, “O Sétimo Selo”, “A Hora do Lobo”, “Sasom I en Spegel”, “O Rosto”). Um criador genial, com uma riqueza e uma prodigalidade como talvez jamais tenha havido outro e, ao mesmo tempo, um potentado restrito, fechado sobre si mesmo, que mesmo não pretextando uma irredutível personalidade e linha criadora, deixa que o Tempo vá passando irremediavelmente sobre, por exemplo, cabedais ou milagres da Suécia e do cinema mundial como Greta Garbo, Ingrid Bergman, Viveca Lindfors, deixa morrer esquecido e amargurado um ator único como Ake Gromberg (o intérprete de “Noites de Circo”), mas insiste em Gunnar Bjornstrand e Max Von Sydow, repete situações e temas (no mínimo “facilitados” pela existência de Strindberg) e torna a convocar uma e outra mesma grande atriz, sem que isso acrescente para ele, para elas ou para o público e a arte do cinema. Mas foi Bergman quem criou “Sede de Paixões” (ainda que sob influxos da alma angustiada de Strindberg) e criou “Gritos e Sussurros”, de certo modo o mais essencial filme contestatário de todo este imoral após guerra. E “A Flauta Mágica”, além de música de Mozart é um filme seu."

Publicado originalmente no "O Estado de S. Paulo" de 26/12/76.

ALPHAVILLE (“Alphaville, Une Étrange Aventure de Lemmy Caution”)

"Um Godard no apogeu do seu prestígio e fôlego como realizador-autor. O assunto – ataque à coação, “defesa” da Liberdade – é o prato predileto para direitistas de alto bordo e para “esquerdistas” de convenção e oportunismo, uns e outros sempre farisaicos e doidivanas e, claro, sempre agindo inconscientemente e em conjunto para afundar mais o barco da pobre convivência humana. Aliás, não se trata de melhor Godard, que isto fica com a sofisticação de “Uma Mulher é Uma Mulher”, com o sarcástico mas real pacifismo de “Tempo de Guerra”, com o cínico e gozador anti mao-stalinismo de “A Chinesa” e com o “charme”, algo enigmático, de “O Desprezo”. Godard, embora todo o seu talento e capacidade, foi – em seu campo – um dos que mais contribuíram para ajudar a deteriorar o mundo nisso que aí está, sem nenhuma salvaguarda dos essenciais valores que haviam sido sedimentados e sem nenhuma nova luz ou “No Gordio” para os males existentes. A fita aqui foi originalmente lançada a 21 de outubro de 1966, nos antigos Cines Scala e Picolino."

Publicado originalmente no "O Estado de S. Paulo" de 19/06/77.

A GUERRA DAS VALSAS (“Walzerkrieg”)

"Com o advento do som e durante toda a década de trinta, o gênero “opereta” encontrou sua expressão peculiar e insuperada no cinema alemão. Otimismo, paroxismo de movimento e alegria, procura do maior descompromisso (as cicatrizes da última guerra e os fantasmas da depressão nos EUA eram sensações por demais insuportáveis e que precisavam ser esquecidas ou ignoradas). Mas nem por isso todo aquele movimento em salões imperiais e alegres estalagens de histórias de cinderelas e príncipes encantados (ou vice-versa), de polimento europeu, de “savoir vivre” implicavam numa ausência de denso delineamento humano, de voraz e sensorialíssima maneira de enxergar homens e mulheres e suas paixões, seus méritos, seus sentimentos, e até suas mesquinharias. Mas sempre seus sonhos...realizados. Este filme, aqui originalmente lançado na Sala Vermelha do Odeon, a 30 de abril de 1934 (em versão francesa com Fernand Gravey e Janine Crispin) foi um dos mais comentados. Na história, a Rainha Vitória, sabendo da fama musical da Viena envia o diretor do “Real Ballet” de Londres a fim de escolher um músico para a corte inglesa. Isso provoca verdadeira competição, quase uma guerra musical entre Johann Strauss e Joseph Lanner, os dois expoentes do gênero na terra de Sissi. O diretor Ludwig Berger, um dos antológicos do cinema alemão dos anos 20 (também dirigiu um terço da versão inglesa de “O Ladrão de Bagdad”, a de 1940 com Conrad Veidt e Sabu e a melhor de todas) e era um elemento dos mais capazes. Examinando-se ficha técnica e elenco, quase que só encontramos elementos que já então eram ou depois iriam se tornar antologia, com grandes atuações em seu ativo: o Berger, os maravilhosos cenógrafos Rohrig & Herlth, intérpretes como a malograda Renate Muller, Adolf Wohlbruck, Paul Horbiger, Karel Stepanek, Hanna Waag e, mesmo, o galã Willy Fritsch, mais o roteirista Rob Liebmann de “O Anjo Azul”, o lendário iluminador Hoffman. Oportunidade rara de respirar outro ar, mais limpo e estimulante, e, ao mesmo tempo, apreciar cinema realizado com todos os requintes de uma época em que ainda se admirava o cultivo e o bom gosto."

Publicado originalmente no "O Estado de S. Paulo de 25/05/80.