domingo, 3 de fevereiro de 2008

O OLHO MÁGICO DO AMOR *

"Inacreditável, inesperado. De onde menos se poderia esperar (ou seja, uma exdrúxula aliança ou conluio entre a “Boca do Lixo”, os “ensinamentos fílmicos” da ECA-USP, do cineclubismo com jactâncias de classe dirigente, aliada ao comercialismo dos lamentáveis tycoons locais que só aceitam, ou mesmo impõem, filmes segundo suas visões preguiçosas, incultas e rotineiras do que fossem as únicas exigências da confluência da avenida São João com a Ipiranga) resultou um filme mágico, que é o que de mais feliz, consistente e artístico o cinema brasileiro produziu nos últimos 30 anos. Sem copiar e sem ser propriamente parecido com Belle de Jour, de Buñuel, ou com o genial “Dillinger está Morto”, de Marco Ferreri, é realmente uma simbiose ou equivalência, em termos nossos, dessas duas obras-primas do cinema mundial. Produção barata (o produtor Fragano informa-nos ter custado, com cópias e tudo, apenas seis milhões de cruzeiros), é o tipo de filme que se pode fazer quando existem duas coisas importantíssimas que se chamam talento e circunstâncias favoráveis. Como “Dillinger”, quase não tem história, como Belle de Jour, é uma projeção de anseios ou de uma realidade. Mas realidade que, embora não deliberadamente pervertida, é “apenas” observada com um visível cabedal de cultura e de gosto, de conhecimento estético e humano. Sem pretensão descabida ou maldosa, um apanhado dos mais bem logrados, de uma incoercível tendência para a degradação, para a destruição. Tudo em nome do que impera num mundo circundante, sem perspectivas e sem valores que tenham sido transmitidos como dignos de ideal ou preservação. Perfeito em tudo, da concepção à intriga, roteiro e direção, da produção à execução, com interpretação, cenografia, fotografia, música, montagem como nunca vimos amalgamar-se e funcionar tanto em condições brasileiras, um filme único que revela em sua dupla de diretores, Ícaro Martins, José Antonio Garcia, duas figuras que concretizaram o que parecia impossível: arte cinemática num ambiente e num momento terrível como este entre nós. Um filme com ousadia sexual, como se destinado para o Cine Marabá, Art-São Paulo, Marrocos ou Windsor, mas para ser degustado no Cine Liberty e para o mesmo público dos Cines Astor, Bristol ou Belas Artes, quando este está no melhor estágio de alcance artístico e de sua auto-estima de espectador culto, sensível e exigente. Obrigatório."

Publicado originalmente no "O Estado de S. Paulo" de 06/03/82.

* Este filme será exibido no Canal Brasil, dia 28/02, às 02:00hs.

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